
Nos últimos anos, as plataformas de streaming reformularam completamente o mercado audiovisual brasileiro. O que antes era um espaço dominado pelas grandes distribuidoras e emissoras de TV agora passa por uma descentralização, onde Netflix, Amazon Prime Video, Globoplay e outras empresas exercem um papel cada vez mais determinante na produção e distribuição de conteúdo nacional. Mas essa nova fase do cinema brasileiro representa um avanço real ou apenas desloca o controle da indústria para novas mãos?
O fim da dependência dos cinemas e TVs
Durante décadas, a produção audiovisual no Brasil esteve refém das grandes redes de televisão e dos circuitos de cinema. Filmes brasileiros que não tinham o respaldo da Globo Filmes, por exemplo, enfrentavam enormes dificuldades para alcançar um grande público. Além disso, a Cota de Tela — legislação que obriga salas de cinema a exibir um percentual mínimo de produções nacionais — nem sempre garantia um espaço digno para essas obras, que frequentemente eram relegadas a horários de baixa movimentação.
Com a chegada do streaming, a lógica mudou. Agora, uma produção brasileira pode estrear diretamente para milhões de assinantes, sem depender do circuito tradicional de salas de cinema ou de um horário privilegiado na TV aberta. Séries como Sintonia (Netflix) e Dom (Amazon Prime Video) são exemplos de títulos que se tornaram fenômenos nacionais sem precisar passar pelas barreiras impostas pelos exibidores tradicionais.
O streaming como nova curadoria do gosto popular
Apesar das vantagens evidentes, há um aspecto preocupante nesse novo cenário: o fato de que as plataformas de streaming passaram a ter um poder de curadoria muito semelhante ao que antes era exercido pelas grandes emissoras de TV. Os algoritmos dessas empresas determinam quais produções ganham mais visibilidade e quais são relegadas ao esquecimento dentro do catálogo.
Esse modelo faz com que o conteúdo nacional bem-sucedido esteja cada vez mais alinhado com as expectativas e estratégias das gigantes do streaming, em vez de refletir a diversidade e a complexidade do cinema brasileiro. Filmes e séries que se encaixam em gêneros populares, como ação, suspense e drama policial, têm muito mais chances de receber investimentos e campanhas de marketing robustas, enquanto obras autorais ou experimentais encontram menos espaço.
Além disso, muitas dessas produções são feitas sob encomenda para atender ao público global das plataformas, o que pode diluir aspectos culturais importantes em nome de uma estética e narrativa mais palatáveis para mercados internacionais. Esse fenômeno levanta um questionamento essencial: até que ponto o novo cinema nacional está realmente expressando a identidade brasileira, e até que ponto ele está sendo moldado para atender a interesses comerciais de empresas estrangeiras?
O efeito da globalização no audiovisual brasileiro
Se, por um lado, o streaming oferece uma vitrine inédita para o cinema brasileiro, por outro ele impõe novas formas de dependência. O financiamento de produções audiovisuais no Brasil sempre foi um desafio, e a entrada das plataformas como grandes investidoras acabou criando um modelo onde os produtores precisam negociar diretamente com empresas estrangeiras para viabilizar seus projetos.
Esse fenômeno gera um paradoxo interessante: enquanto as plataformas garantem uma difusão global do conteúdo nacional, ao mesmo tempo elas reforçam um modelo de produção que pode limitar a ousadia criativa dos cineastas. A lógica do streaming prioriza conteúdos de fácil consumo, com estruturas narrativas que se encaixam em padrões já consolidados, o que pode sufocar parte da inovação que o cinema brasileiro historicamente apresentou.
Outro ponto crítico é a forma como as plataformas remuneram os criadores. Ao contrário do modelo tradicional, onde a bilheteria e os direitos de exibição geram receitas contínuas para os realizadores, o streaming opera majoritariamente com pagamentos fixos. Isso significa que, mesmo que um filme ou série brasileira se torne um fenômeno mundial, os criadores muitas vezes não se beneficiam proporcionalmente desse sucesso, pois já venderam sua obra por um valor pré-definido.
Alternativas e caminhos para um mercado mais sustentável
Diante desse cenário, como garantir que o cinema brasileiro continue crescendo de forma independente e autêntica? A resposta pode estar na diversificação das fontes de financiamento e na criação de políticas públicas mais eficazes para o setor.
O papel do Estado ainda é fundamental para garantir que produções independentes tenham espaço e que cineastas tenham a liberdade de criar sem depender exclusivamente das plataformas de streaming. Editais públicos, incentivos fiscais e fundos de investimento são ferramentas que podem ajudar a equilibrar o jogo, permitindo que obras menos comerciais também encontrem seu público.
Além disso, é necessário que o próprio público brasileiro valorize e consuma mais o cinema nacional em todas as suas formas, não apenas as que são impulsionadas pelos algoritmos. A ascensão das plataformas oferece um potencial imenso para o audiovisual brasileiro, mas é essencial que essa transformação não aconteça às custas da identidade cultural e da liberdade criativa dos artistas.
No fim das contas, a questão não é apenas “quem manda na cultura pop brasileira?”, mas sim como garantir que essa cultura continue sendo autêntica, diversa e acessível para além dos interesses das grandes corporações. O streaming abriu novas portas, mas cabe a nós decidir como atravessá-las.